Todos
os anos, nesta época, costumo visitar uma cidade relativamente próxima e regressar só no fim do
dia. E todos os anos tenho encontrado um
personagem curioso, abusado, vestido de Papai Noel, que, de uma forma ou de
outra, sempre encontra uma maneira de me
importunar, seja pedindo-me alguma coisa, seja
apenas falando sem parar.
Noto
que as pessoas o evitam com um sorriso, fogem da sua irreverência algo
desmedida, da sua voz trovejante e da falta de limite das suas palavras.
No
dia em que o vi pela primeira vez, o
garçon acabara de perguntar-me o que
queria para acompanhar o bife que encomendara, se arroz, se batata, e eu
respondera: “Batata!”. Foi então o Papai
Noel chegou de repente, sentou-se à
minha mesa, e disse que queria a mesma coisa, sorrindo sempre, olhando
alternadamente de mim para o garçom, até que eu acabei por concordar.
Afinal, dentro de alguns minutos eu sairia dali num ônibus e não voltaria a vê-lo. Podia perfeitamente pagar-lhe uma refeição decente.
Afinal, dentro de alguns minutos eu sairia dali num ônibus e não voltaria a vê-lo. Podia perfeitamente pagar-lhe uma refeição decente.
O
garçon afastou-se, e foi então que ele
se apresentou. Estendeu para mim uma mão muito suja, que hesitei em apertar, e
disse com um sorriso alvar onde faltavam dentes:
-Muito
obrigado, estou com uma fome de leão ! E
deixe-me aproveitar para apresentar-me: - Eu sou o Papai Noel ! Você, eu já sei: - é o Batata !
-Hem ?
Não... Que é isso ??? Eu sou o...
-Batata
!
Não adiantou espernear. Fiquei sendo o Batata.
E nos anos seguintes, naquele mesmo barzinho
sempre meio vazio, enquanto como alguma coisa durante o tempo de espera pelo
ônibus, sempre acabo encontrando Papai Noel. E sempre acabamos comendo juntos e
conversando, de tal maneira que o garçon, aquele cretino – que hoje já é outro, cretino também – me trata por Dr.
Batata, e sempre coloca dois lugares à mesa.
E
sempre Papai Noel chega vindo do nada,
nas mesmas velhas roupas surradas, de bolsos enormes, ruidoso, espalhafatoso,
sujíssimo. E já várias vezes perdi o
ônibus, e acabei tendo de tomar um outro
mais tardio, por conversarmos tanto. Mas nunca o interroguei a respeito de ele ser
ou não Papai Noel, e ele nunca disse nada menos condicente com o personagem que
representa há tanto tempo.
Este ano, entretanto, decidi finalmente intrepelá-lo.
Talvez até entrevistá-lo. Porque não ?
Assim,
estava já sentado à mesa quando escutei nas minhas costas o seu vozeirão
poderoso, falando em espanhol “- Eres
tu, Batata ??? ”
Sorri
por dentro, e a força que tive de fazer para não o deixar perceber esse
sorriso, nem a minha alegria por
reencontrá-lo, deu-me a dimensão
exata da ansiedade com que eu aguardava este nosso encontro. Levantei-me e abracei o
meu velho amigo Papai Noel.
-Si
! Yo mismo ! Pero ahora hablas español ? – perguntei, olhando-o no rosto muito
escuro, contrastando com o cabelo muito branco.
-Es que asi no necesitas traducirme! Verdad ? - o seu sorriso era desconcertante.
-Es que asi no necesitas traducirme! Verdad ? - o seu sorriso era desconcertante.
-Ah...Já sabes
que este ano quero fazer da nossa conversa uma entrevista?
-Claro
!
-Mas
como sabes?
-Tinha
que acontecer, mais cedo ou mais tarde. Sempre percebi isso, nas perguntas contidas que não te
atrevias a fazer... E há coisas que um velho Papai Noel sabe por
instinto. Digamos que são privilégios da velhice...
-Acho
que eu fui muito transparente...
-Ah,
sim! Muito ! – riu ele.
-Mas então,
se és mesmo Papai Noel, porque nunca me deste um Presente de Natal ?
-Hum... Vejamos... Quantas
pessoas conheces aqui nesta cidade?
-Aqui
na cidade não conheço ninguém. Só tu!
-E
eu não sou daqui. Eu apenas te procurei, te ofereci a minha mão e a minha
companhia.
Eu
ri-me, divertido.
-Companhia
que foi jantando às minhas custas, estes
anos todos !
-Bem... Isso
foi um detalhe, só para tua satisfação pessoal! Ficaste feliz, por achares que
me podias perfeitamente pagar uma refeição decente. Não foi? Confessa, vá...
-Bem… Sim, isso é verdade...
-Então,
aí está... Eu fui o teu presente, todos estes anos! Entendeste ?
-Bem...Sim,
mas...
-Entonces…. Vamos
a cenar, hombre! Podemos falar enquanto comemos.
-Está
certo! Não deixa de ser verdade. Confesso que estou um pouco desorientado...
-Acalma-te
! Pergunta o que quiseres...
-Bom,
diz-me o teu nome, então...
-Santa
Klaus!
-Ah
não! Assim não! Tu és negro!
Ele
parecia surpreendido.
-Sim!
Desde niño! Faz tempo, isso !
-E
onde está o trenó, que eu nunca o vi?
-Bem,
sabes...É muito difícil usar aquela coisa sem neve...
-Mas
o teu trenó voa! Não precisa de neve...
-Hummmmm...Chega aqui...
-Hummmmm...Chega aqui...
Aproximámos as cabeças, por cima dos pratos.
-
Consegues mesmo acreditar nisso ? E mesmo que fosse verdade, já viste como está a situação dos aeroportos? hein ??? Filas de dar medo...
Fiquei
sem respostas. Entretanto, a comida chegou. Fomos comendo quase em silêncio. Num estacionamento vazio ali perto, um grupo de garotos estava
sentado no chão, sem fazer nada.
Então, sem interromper o que me estava dizendo, Papai Noel levantou-se, abriu a janela e tirou do bolso uma bola de tenis amarela, novinha em folha. Deu um grito para os meninos e atirou-a na direção deles, lá para fora. Depois sentou-se de novo, e continuou comendo e conversando.
Então, sem interromper o que me estava dizendo, Papai Noel levantou-se, abriu a janela e tirou do bolso uma bola de tenis amarela, novinha em folha. Deu um grito para os meninos e atirou-a na direção deles, lá para fora. Depois sentou-se de novo, e continuou comendo e conversando.
Em
pouco tempo a criançada lá fora já jogava um jogo impossível de descrever, com
uma bola amarela e improvável. Ele ria, olhando para eles, enquanto
conversávamos sobre outras coisas. Aos poucos voltávamos à entrevista.
-E
as renas? – perguntei suspeitoso. – Como se chamavam as renas?
-Bobi
!
-Bobi
? – repeti eu escandalizado – Mas isso é nome de cachorro!
-Ah
é ? – perguntou ele com um ar muito inocente…
-Claro
que é ! O que aconteceu com Rudolpho e as outras, heim ?
-Não
sei, nunca as vi ! Quando assumi o cargo aqui, já então não havia renas. Ouvi
falar de um churrasco, há muito tempo...
-Churrasco? Mas isso é uma loucura ! Isso é coisa que se
diga?
-Cálmate,
hombre. No sei se é verdade. Mas nunca as vi.
Comecei
a entender tudo. Ele não era o Papai Noel.
Só de nome...
-
Entendo...E para as tuas deslocações usas...
-
Ah, um velho furgão da Ford, de quem ninguém suspeita, eh eh eh !
-
E o que aconteceu ao célebre "HOU,
HOU, HOU" ?
-
Isso é só mesmo quando há meninos por perto, claro. Ninguém se ri assim, não
achas ?
-
Bom, isso é verdade... Mas...e o saco dos presentes...Também não usas, é claro
!
- Saco, saco...não uso. Mas olha o
tamanho dos meus bolsos... Muito mais práticos. E hoje em dia os presentes também são
muito menores que dantes. É um pendrive para uma pessoa.
É uma caneta bonita para outra. Uns brincos com uns brilhantes. Um alfinete de gravata...Uma
lingerie mais sexy...
- Hein ? – Eu mal acreditava em meus
ouvidos. Estava chocado! – Mas isso não são coisas que se possa dar às crianças. Crianças gostam de brinquedos, bicicletas,
carrinhos, bonecas, coisas assim...!
-
Nááá!...Eu prefiro os adultos...É uma questão de lógica. Se ajudares os
adultos, eles vão dar melhores presentes às crianças. Se eles estiverem
felizes, com o espírito certo de Natal, eles vão
levar o Espírito de Natal para suas casas e ensinar às crianças o
Espírito de Natal...e isso é o que importa. Não achas ?
Eu
fiquei sem saber o que dizer, perante aquele papai Noel negro, sujo, de quem
era amigo e com quem jantava há tantos anos sempre no mesmo lugar, que nunca
vira renas nem trenó, e que se achava ele próprio o meu presente de Natal, apesar de jantar
sempre às minhas custas.
A minha
cara devia traduzir a surpresa que eu sentia, porque papai Noel riu-se
e disse-me:
- Não fiques assim, chocado comigo. A vida é como é. E não é mais do que apenas um sonho, tal como resolvemos sonhá-lo. Enquanto houver espaço no teu sonho para um Papai Noel com um saco ás costas, descendo pelas chaminés e distribuindo presentes para os meninos - vai ser assim mesmo ! Enquanto houver espaço para um trenó puxado por Rudolpho e as outras renas, guizos soando na noite, e um trenó mágico, voador, que não precisa de neve e voa pelos ares rumo ao Polo Norte, onde fica a fábrica de brinquedos de Papai Noel – não será de outra forma, nunca...
- Não fiques assim, chocado comigo. A vida é como é. E não é mais do que apenas um sonho, tal como resolvemos sonhá-lo. Enquanto houver espaço no teu sonho para um Papai Noel com um saco ás costas, descendo pelas chaminés e distribuindo presentes para os meninos - vai ser assim mesmo ! Enquanto houver espaço para um trenó puxado por Rudolpho e as outras renas, guizos soando na noite, e um trenó mágico, voador, que não precisa de neve e voa pelos ares rumo ao Polo Norte, onde fica a fábrica de brinquedos de Papai Noel – não será de outra forma, nunca...
Eu
olhava para ele, sentindo que algo importante estava acontecendo ali, naquele
momento, e então ele continuou:
-Mas
pode ser que, um dia, só caiba no teu sonho um Papai Noel mais simples, menos
mágico e mais humano, que não chegue a tantos lugares. Que talvez nem voe pelos
ares, num trenó, mas que tente
ajudar aqueles de quem se aproxima, provávelmente só com pequenos gestos: um pouco de companhia; uma bolinha barata
para os meninos pobres; um saco de comida para os cachorros de rua; qualquer
coisa que talvez nem seja um sonho muito grande. Pode ser um Papai Noel branco, negro,
mestiço, de qualquer cor – não vai fazer diferença nenhuma. O Natal é só um
dia, no ano. Mas um sonho é um gigante que não morre nunca.
Então,
súbitamente, Papai Noel levantou-se.
E de um dos seus bolsos tirou uma caixa que me entregou.
-Agora
tenho de ir-me ! – disse.- Este ano, que é o meu último ano como Papai Noel, houve espaço no meu sonho para trazer-te um
presente. Quem sabe se no próximo ano haverá espaço no teu sonho para usá-lo ?
Abracei
o meu velho amigo, e virei-me procurando uma mesa sobre a qual abrir o presente
que me oferecera. Quando voltei a
virar-me para ele, ele já tinha partido, sem que eu me apercebesse. Voltei a
olhar o presente. Em cima da mesa estava uma roupa completa de Papai Noel,
novinha e brilhante, com um cartão que dizia: “- As botas compras tu, tá ? “
A
minha risada soou um pouco alta demais.
Entretanto, o garçon aproximara-se da janela e ria-se também. Os meninos do
estacionamento tinham interrompido o jogo e assistiam a um fogo de artifício
que vinha de um velho furgão Ford estacionado lá ao fundo, ao lado de uma árvore de Natal que estava toda iluminada.
Fui
á janela também para assistir, e a criança que ainda há em mim maravilhou-se
com as luzes e as cores, e principalmente com as risadas das crianças e das pessoas que passavam...
E
não vi nenhum trenó, mas juro que escutei uns guizos que não esperava. E, por cima
de tudo aquilo, uma inesperada risada de "HOU ! HOU! HOU !" pareceu
pairar nos céus por sobre toda a cidade.
Voltei
a olhar a roupa. Depois dei por mim a pensar:
”- No próximo ano, quem sabe???”
Henrique
Mendes / Dez 2011 Revisado
No bom humor, uma delicada estória, ou história! Posto que de ti e teus escritos, tudo de bom e bonito, se pode esperar. Comprou as botas e as meias para 2016 Papai Noel?? Rara beleza e flor de sensibilidade que só almas como a tua possuem!! fraterno abraço Henrique!! És mui querido, e não sem motivos.
ResponderExcluirAdorável! Adorável!
ResponderExcluirMuito obrigado, Misa. Fico muito feliz que tenha gostado. Acalento a esperança de conseguir que escreva um conto de Natal seu, é uma tradição que se foi perdendo e que eu luto para reanimar.
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