quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

9 - NOEL NO BAR - Natal 2016







Há em mim, desde sempre, um certo fascínio pelos pequenos bares. Presumo que isso tenha a ver com um certo conforto  físico e estético que proporcionam,  mas sem dúvida tem a ver com um outro tipo de conforto também, feito da possibilidade de alheamento do mundo que se deixa do lado de fora, ao entrar.

Tudo convida a isso já que, dentro,  quase sempre há uma combinação ideal de músicas tocando baixinho,  com os objectos perfeitos para o lugar. Os couros e as madeiras, os brilhos dos vidros e dos metais cromados, os amarelos polidos com primor, e um tipo de iluminação que torna indiferente se é dia ou noite, na rua. Tudo junto, e eis um espaço criado para ser colectivo,  mas com uma acolhida e um aconchego de recanto individual, onde cada um pode conviver ou apenas viver o seu momento particular – mesmo com vizinhos próximos.

Nesse dia, eu entrei fugindo do frio. Ignorei as mesas e procurei um lugar ao balcão que ficasse longe da porta. Acabei  por sentar-me  num banco alto, bem estofado, não muito iluminado e com ar de ser confortável. Em frente, dentro do balcão, além das prateleiras com garrafas de bebidas e copos, havia uma porção de velhas fotos em molduras escuras, e um  espelho aparentemente antigo, pintado com motivos muito elaborados dos anos vinte.

Podia ver  nele reflectida a penumbra ambiente do restante do bar nas minhas costas, e aos poucos, com os olhos habituando-se à luz mais velada, fui podendo ver os diversos recantos criados pela disposição das mesas e biombos baixos destinados apenas a dividir os espaços. E num desses, um sujeito vestido de Papai Noel, bebendo sossegadamente.

Enquanto pensava no que havia de pedir para beber, apercebi-me que havia uma quantidade considerável de copos  vazios na mesinha à sua frente, e  fiquei meio intrigado com o insólito da situação. Quando o barman se aproximou, pedi-lhe um conhaque quente, e acenando para trás com a cabeça, na direcção do Papai Noel, perguntei se era cliente habitual.

-Não, senhor. É a primeira vez que o vejo por cá. Quando chegou vinha com muito frio, e parecia meio triste. Mas agora parece já estar bastante bem…
Olhei o espelho com mais atenção, e realmente o Papai Noel parecia em óptimas condições. Na verdade, talvez tivesse percebido que estávamos falando sobre ele, pois tinha-se levantado e encaminhado para o balcão, agarrando-se ao banco junto do meu.

Sendo baixote, gordinho e  já de idade, subir para aquele banco alto  depois de ter tomado várias bebidas não ia ser tarefa fácil.  Mas acabou perguntando se me incomodava sentando-se ali, eu respondi-lhe que não, e num instante ele estava ao meu lado no balcão.

-Isso é conhaque?- perguntou, apontando para o meu copo, em formato de balão.
-Sim, quentinho!
-Ah! Eu não tive coragem de pedir um! Fiquei-me  pelo ponche quente, que é docinho - e eu sou muito guloso. Creio que todos os velhos são meio gulosos…

Eu ri-me. Era simpático, o velhote. Tinha a sensação de já o conhecer.

-Eu sou  guloso, também!
-Ah, mas você ainda é jovem. E ser guloso é mais do que apenas gostar de coisas doces.
-Não me diga! É mesmo ?
-Claro que é! Ser guloso é deixar de lado a bebida que realmente nos apetece para beber uma outra só porque é doce.
-Bem… Não sei que diga! Nesse caso ainda não sou guloso… Continuo a beber o que me apetece. – brinquei.
-E faz muito bem, meu jovem! Talvez o tempo um dia venha a mudar isso. Ou talvez não. Mas há uns momentos em que qualquer pessoa precisa de ser um pouco complacente consigo mesmo. Precisa dar-se um mimo, um presente, ou fazer algo por si mesmo que lhe traga prazer. Nós somos feitos de pequenos prazeres.
-Hummm… Acho que posso concordar com isso! Vou dar-me mais um pequeno prazer! – aproveitei e fiz sinal ao barman para trazer novo conhaque. Era aromático, suave, e estava quente na medida certa.
-Isso, isso! – riu-se o Papai Noel ao meu lado. Vejo que  já entendeu o espírito do que eu disse. Eu vou tomar mais um ponche bem quente, também. Por favor…
O garçon aproximou-se trazendo a minha bebida, e discretamente falou com ele.
-Senhor, claro que posso trazer mais um ponche. Mas já tomou vários, em pouco tempo…
O velhote riu-se, bem disposto com a preocupação do outro.
-Ah, mas não há problema nenhum! É uma das vantagens de se usar um trenó. As renas sabem o caminho para casa !

O barman e eu rimos junto com ele.

-Não se preocupe, meu jovem. Pode trazer-me mais um ponche, por favor!
Enquanto o homem se afastava, eu comentei com o Papai Noel:
-Ele é um bom profissional. Preocupado em ser correcto e em fazer a coisa certa.
-Sem dúvida, sem dúvida! Gostei de ver que se preocupava. Hoje é raro ver as pessoas preocuparem-se com as outras.
-É verdade!
-Talvez por isso haja tanta infelicidade por esse mundo. As pessoas não se preocupam com os outros. Só querem saber de si mesmas…
-Realmente! Ninguém parece importar-se muito…
-Não importam, não! Se você, meu caro, soubesse as coisas que me pedem!... São coisas formidáveis, mas cada um pede para si mesmo. Não para outra pessoa, mesmo que ela precise.

Comecei a olhar o velhote com outros olhos.

-E as crianças ? – perguntei
-Ah, bem… As crianças são crianças. Pedem para si mesmas, também, mas depois emprestam aos amiguinhos, trocam,  dão, perdem. As suas coisas mudam de dono, ganham outros destinos.   Mas são generosas, as crianças…
-Pedem coisas difíceis ?
-Bem, às vezes pedem coisas impossíveis. E pedem coisas para os adultos, mas que, vendo bem, são para elas.
-Desculpe, não entendi!
-Como posso explicar? Às vezes não pedem coisas de presente. Pedem para os pais não discutirem, para se darem bem. No fundo querem estar bem, em casa. Portanto estão a pedir um presente para eles mesmos…
-O que não deixa de ser bonito, da mesma forma! – acrescentei eu.
-Sem dúvida! Claro que é muito bonito. Mas é difícil, porque depende das pessoas, não do Papai Noel.
-Deve ser difícil lidar com isso… - disse eu, pensando nos ponches que ele já tinha bebido.
-Sim, não é fácil! - respondeu, com simplicidade. Depois ficou em silêncio, algo absorto. Senti que a nossa comunicação estava a perder-se, e apressei-me a perguntar:
-Já é Papai Noel há muito tempo ?
Ele olhou para mim como se não entendesse a pergunta. Depois deu um sorriso e assentiu com a cabeça.
-Parece uma vida inteira, meu jovem!
-Trabalha nestas grandes lojas de departamentos, aqui no cimo da avenida ? Eu creio que já o vi lá, sentado num cadeirão e tirando fotos com as crianças no colo…
-Sim, nessas também.  Veja bem… Aqui entre nós: - Eu sou o verdadeiro Papai Noel!
-Ah! Entendo! – disse eu, olhando  pelo espelho para os vários copos vazios que ele abandonara na mesinha antes de vir conversar comigo. Com isso, ele deve ter percebido minhas dúvidas.
-Mas  vou a outras lojas também, um pouco por toda a parte. E também faço visitas a domicílio, principalmente à noitinha. Quase todas as grandes lojas contratam pessoas para fingir que são o Papai Noel, e brincarem um pouco com as crianças…
-Pois é! – disse eu. – E o senhor é um dos contratados, todo os anos, não é verdade ?
-Sim, isso mesmo! Desses papais Noel todos que se vêem por aí nas lojas, sempre há um que é o verdadeiro. Sou eu! Deixo-me  contratar para poder estar com as crianças e saber quais  são os seus sonhos e os seus desejos. Para poder escutá-los e dar-lhes esperança de que os seus sonhos se realizarão, entende, meu jovem ?
-Bem, creio que sim! Mas, e quando não é época de Natal ? – perguntei – Claro que não fica desocupado…
-Desocupado, eu ? Nunca ! Sempre há tanto que fazer! Mil coisas para preparar duns anos para os outros. Cartas para ler, fotos para assinar, listas de desejos…
-Listas de desejos ? As crianças entregam-lhe listas de desejos ?
-Não! Essas são principalmente dos adultos! E não desejam pouco, não! Sempre querem riquezas e poder, e coisas que lhes darão conforto. Viagens, carros, casas, jóias, dinheiro, coisas assim. Desejam sem limites,  e Papai Noel é que tem de resolver tudo. Quando ele não consegue, dizem que Papai Noel é coisa de criancinha, que não existe, e que só os muito inocentes e crédulos é que acreditam nessas histórias…
-Por isso faz falta um ponche quente, de vez em quando, não é ? É preciso coragem para ir lá para fora, e encarar toda essa gente que só sabe pedir…
-Sabe que é isso mesmo, meu rapaz ? O pior de tudo é saber que nem acreditam em mim, e que pedem sem acreditar. Quando consigo dar-lhes o que pedem, então sim, dizem que fui eu, e fingem que acreditam. Quando não consigo, eles dizem que não existo e ainda se riem daqueles que acreditam, chamando-lhes tolos…
-Compreendo! Realmente, nessa hora um ponche faz falta!
-Faz sim, meu rapaz. Mas hoje já abusei do ponche, e está na hora de ir trabalhar. Foi um prazer conhecê-lo. Talvez possamos encontrar-nos mais vezes aqui neste barzinho!
-Claro! Quem sabe? Gostei muito daqui, vou voltar mais vezes. Foi um prazer conhecê-lo também!

Trocámos um abraço e o velhote saiu, apressado, depois de agradecer e pagar a conta. Eu fiquei mais um pouco, pondo os pensamentos em ordem e preparando-me sem pressas para sair. Foi quando vi uma luva de Papai Noel caída no chão, junto ao meu banco.

Vesti o casaco rapidamente, e ainda fui às pressas tentar apanhá-lo lá fora, mas não consegui. Então, acabei subindo a avenida até às grandes lojas onde eu sabia que ele iria estar. E já havia uma grande quantidade de crianças que o aguardavam em frente do cadeirão onde ele iria sentar-se, mas ele ainda não estava presente. Deixei a luva com um funcionário que me disse que ele tinha chegado e saído de novo, procurando uma luva que tinha perdido pelo caminho.

Regressei ao bar para apanhar algumas coisas que lá tinha deixado. Quando entrei vi imediatamente um presente em cima do banco que eu usava ao balcão, com um pequeno cartão entalado debaixo do laço. Dizia apenas:  

“Permita-me um gesto de amizade. Este era o presente que desejou oferecer a sua esposa. Aqui está, como recordação do Papai Noel”.

Desta vez, pedi um ponche quente, em homenagem ao bom velhinho.


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