Eu
vi quando, antes de sair, ele ficou olhando aquela reprodução duma velha foto
em que eu, cliente habitual, nunca prestara atenção. Era uma ampliação enorme,
que fora transformada na logomarca da casa. E ele era um homem negro, bem
vestido, mas com simplicidade.
Já
o tinha notado quando ele entrara e fora directamente para trás do balcão e
ficara conversando simpaticamente com o empregado do pequeno bar em que eu me
encontrava. Pouco depois colocara um avental e começara a lavar uns copos
enquanto, com um gesto discreto, apontara na direcção da sala e fizera com que o empregado recolhesse toda a louça que havia
nas mesas, e que já era desnecessária.
Acabei
pedindo mais um café quando este me abordou, perguntando
se podia levar a chávena vazia. Notei que estava um pouco nervoso.
-É
o patrão ? –perguntei
-É
sim, senhor ! – e voltou para o balcão, atarefado.
Pouco
depois, de o patrão ter saído, aproximou-se sorrindo, para continuar o assunto
-E
ele fica lavando louça, assim ? – admirei-me
-Ele
gosta ! – respondeu desconcertado. - Sempre faz isso, quando aqui vem. Confere
as contas, vê se está tudo bem, se é preciso alguma coisa, e depois vai-se
embora. Mas sempre atende algum cliente, ou lava louça, ou faz algo assim. Ele
e a irmã hoje são donos de uma rede enorme de pequenos bares como este, junto a
estações, ou a rodoviárias.
-Ah
é ? - perguntei só para dar seguimento à
conversa…
-Sim,
senhor! Nada de muito luxuoso, como vê. Apenas
pequenos lugares agradáveis onde se pode descansar um pouco, ou marcar
um encontro com alguém, ou comer uma pequena refeição simples e baratinha.
-Parecem
gente boa!
-São
sim, senhor. Diz-se que passaram dificuldades, quando eram crianças. E que
trabalharam muito para conseguirem ter alguma coisa. São muito humanos.
Outros
clientes chamaram a atenção do empregado, que foi atendê-los. A minha recaiu sobre a foto da
logomarca, na entrada. Havia nela alguma coisa vagamente familiar. Passado um
pouco, o empregado regressou com uma foto de tamanho normal, que me mostrou.
-
Esta é a mesma foto, sem ser ampliada ! – disse – Os donos fazem questão que a
mostremos a toda a gente que se mostre interessada na foto do logotipo. Dizem
que um dia alguém verá essa foto e se lembrará
deles.
Olhei
a foto. Eram dois meninos negros rindo, um de cada lado de um boneco feito com um pequeno tambor de lata, ferrugento. Sorri das suas
expressões de felicidade intensa. Num instante, a minha memória recompôs tudo.
O
gorro do boneco era feito com um saco de cimento sujo com barro vermelho, que
custara a ficar em pé para a fotografia.
Os
olhos, tinham sido improvisados com duas páginas de agenda, recortadas em
redondo, e duas tampinhas pretas das caixas dos rolos de fotos.
A
boca tinha sido desenhada a carvão, aberta, rindo muito.
Depois
tínhamos feito furos com um prego e colocado pequenos pedaços de corda
desfiada, com um nó na ponta, de dentro para fora, e ficara uma barba razoável,
mais cerrada de um lado do que do outro, mas ainda assim uma barba…
E, no final das contas, ficara um boneco que os
garotos tinham adorado apesar daquele ar de poeira suja, do vento e da fome que
havia naquela aldeia remota, lá em Africa, perto duma estação ferroviária incongruente, onde ninguém se
apeava, nem ninguém subia, e onde um mato ralo crescia no meio dos trilhos…
“-Quem
é esse?” - tinham perguntado.
“-Esse
é o Pai Natal!”- respondi, rindo com eles
“-Na
minha terra chamam-lhe Papai Noel…”- dissera o meu colega brasileiro.
“-E
na minha, chamamos-lhe Santa Claus! “ – acrescentara Ramón, que falava
espanhol.
“-Tem três nomes…”
“-Ih…tem
muitos nomes…Mas é sempre o mesmo! Aparece sempre neste dia, para trazer
presentes para as crianças.”
Os
garotos pareceram confusos. Não sabiam o que eram presentes…
“Comida!
“ – expliquei prosaicamente. E então
eles riram muito…
E
foi assim que eu e mais dois colegas acabamos dividindo alguns mantimentos com
esses dois garotos, que teimavam em nos ajudar, e fazendo uma espécie de jantar
com eles. Era 24 de Dezembro, e a noite ajudava a não ver e a conseguir esquecer toda aquela
miséria na aldeia, além do círculo de luz da fogueira.
Tinha surgido a
brincadeira do Pai Natal, e na sequência dela o jantar ganhara, para nós, o simbolismo de uma ceia.
Um
dos meus colegas, ao saber que não tinham pais, deu-lhes algum dinheiro.
Disse-lhes que era suficiente para apanharem o próximo trem que passasse e irem
para uma cidade grande, longe dali.
Eles riam tanto do boneco barbudo, estavam
tão felizes tagarelando na sua língua nativa um com o outro, que duvidámos que
tivessem entendido. Tiramos umas fotos, que mais tarde fizemos chegar ao chefe
da estação, para que lhas encaminhasse.
Agora,
ali no bar, tantos anos depois, o empregado contava-me a história daquele
patrão insólito, eu olhava a chuva lá fora, pensava naqueles meninos de uma
véspera de Natal tão distante da minha vida de hoje, e recordava-me de uma
consoada improvisada feita junto de uma estação poeirenta.
O
empregado ia falando, e eu fui sabendo como todos os anos, na véspera de Natal,
eles abriam as portas e serviam um jantar muito simples, gratuito, a quem
quisesse comer. E recordava o homem negro que vira entrar e sair, que afinal
era o dono de uma rede de pequenos bares que existia em vários países, junto às
estações.
Identificava
nele aquele menino da foto, ao lado daquele boneco de lata com barba de corda,
rindo muito com a irmã num lugar poeirento de África, quase sem esperança, num
dia em que alguém lhes dera razões para
rir.
Olhei
novamente a logomarca, com outros olhos. Dizia:
Pai Natal – Café.
Fiquei
com a certeza que, nos outros países onde existiam, os pequenos bares não
seriam nada diferentes daquele. Apenas o nome mudaria um pouco, talvez.
Mas estaria
também escrito junto da mesma foto ampliada que agora eu já reconhecia, de um
boneco de lata com barba de corda e uns olhinhos pretos, redondinhos, feitos com tampinhas de caixas de rolos de fotografias….
Henrique
Mendes/2013
Lindo, lindo!! Pois do sonho, vem o edificar. Da melhor lembrança, o jamais olvidar! Muitas lições de vida, permeadas de imensos carinhos, de muita compreensão, diante das dores e parcas alegrias dos infantes. Grata Henrique, pelas leituras abençoadas, de um imenso Escritor, você!! meu grande admirar!! Carinhoso e fraterno abraço!!
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